Durante alguns segundos, o público, em
silêncio e na mais completa escuridão,
aguarda o início do espetáculo, no
Théâtre du Lierre, em Paris. De repente,
poderoso spot derrama luz intensa e
branca sobre uma figura sentada na
primeira fila da platéia. Sua aparência
oscila entre o grotesco e o sublime:
Kazuo Ohno, 87 anos, o mais velho bailarino
do mundo. Usa um vestido longo,
de crepe de seda de cor pálida, chapéu de abas
transparentes, sapatos de salto
e luvas compridas. Lentamente, inicia a
caminhada em direção ao palco, onde,
uma vez mais, exorciza e é possuído por seu
mito, sua inspiração:
"La Argentina", bailarina espanhola dos anos vinte. É
Kazuo Ohno em
sua criação Admiring La Argentina.
Em alguns momentos do espetáculo
não se vê mais Kazuo Ohno, mas o fantasma
que ele anima. De certa
forma, Ohno dança desafiando a morte e chega a uma
relação tão próxima,
íntima e desesperada com ela, que acaba adquirindo o rosto
de sua adversária.
Rude, essencial, espontâneo, o Butoh se apõe tanto às formas de dança
tradicional japonesa como à dança ocidental. Seu princípio fundamental é o
desejo de aniquilar o corpo, de torturá-lo, para que ele possa revelar sua
verdade.
A carne é negada para ressaltar a tensão do espírito.
Irion – Como você começou a dançar?
Kazuo Ohno – Foi quando vi "La Argentina", em 1929. Sua dança era
excepcional.
Tão excepcional que se tornou difícil para mim começar a dançar.
Somente cinco anos
depois que a vi, e também porque eu trabalhava como professor
de educação
física e queria ensinar dança na escola, é que comecei realmente a
estudar.
Durante esses cinco anos ela nunca me saiu do pensamento.
Hesitei
muito em começar porque não me achava preparado.
Sempre achei que sua arte era
uma autêntica ponte entre o céu e a terra.
Trabalhei anos como professor,
sempre ensinando movimento e dança.
Mas ainda hoje tenho dúvidas se a dança é
algo que possa ser ensinado.
Acho que é alguma coisa que alguém tem que
descobrir por si mesmo.
Hoje me sinto como um estudante, não como um mestre.
Eu não ensino dança,
estou sempre na posição de aluno. Mas só cheguei a essa
conclusão após ter
dançado por muitos e muitos anos. Na verdade, a dança que
alguém pode
ensinar e o outro aprender não é tocante, não atinge a emoção das
pessoas.
Irion – Além de "La Argentina", quem mais o influenciou?
Kazuo Ohno – Mary Wigman, que me transmitiu o que é a
beleza.
Irion – Em algum momento de sua formação você teve aulas de dança
clássica japonesa?
Kazuo Ohno – Cresci vendo as danças tradicionais da cultura
japonesa.
Observava muito, mas nunca aprendi essas danças. O que realmente
me
fascinou, desde a infância, e que me direcionou para a dança, foi
a música
clássica ocidental. Compositores como Chopin, Bach e muitos outros.
Irion – Algumas pessoas comparam o seu trabalho com as danças do
teatro clássico japonês, como o Nô e o Kabuki. É um mal-entendido?
Kazuo Ohno – Quando a platéia ocidental recebe esse tipo de
impressão,
acho que, de qualquer forma, está no bom caminho. Mas vamos pensar
um pouco sobre as diferenças entre a cultura ocidental e a cultura japonesa.
Acho que, para os ocidentais, a cultura japonesa é muito fechada. Mas eu cresci
no meio da cultura tradicional japonesa. Hoje creio que a principal diferença
entre nós é que os ocidentais procuram explicar as coisas logicamente,
intelectualmente, enquanto que nós sentimos através da alma. Se a platéia
ocidental relaciona o meu trabalho com o Nô e o Kabuki, somente pela
aparência,
já é um bom começo para entender o Butoh, mas não é o que se
poderia chamar de
um entendimento profundo, completo. É claro que tanto
o Nô como o Kabuki também
nasceram da mais profunda maneira de agir
e pensar do povo japonês, ou seja, a
busca constante da transcendência,
da espiritualidade. De qualquer forma, temos
que entender juntos o Butoh,
temos que encontrar juntos esse relação de
comunicação. Não é uma única
via: o performer dá a impressão e o público
recebe essa impressão. É uma
relação mútua, viva, e temos que achar juntos a
sua significação.
Irion – Você ainda pratica a dança?
Kazuo Ohno – Mais importante que a prática é achar o próprio
caminho, tendo
sempre uma atitude espiritual frente ao trabalho. É preciso que
essa atitude seja
muito clara e muito profunda, mas explicar isso em palavras é
uma coisa muito difícil.
Irion – O que você diria sobre o seu trabalho?
Kazuo Ohno – Não me interesso pelo pensamento lógico, racional.
Estou
preocupado em questionar o espírito. Acho que a própria vida inclui algo
de louco, de incompreensível, que escapa ao pensamento racional. Por exemplo,
no momento da concepção existem milhões de espermatozóides tentando fecundar
um
óvulo, mas apenas um consegue. É puro acaso. É a mais completa desordem.
Não
há organização alguma. Sob o ponto de vista racional, isso é louco.
Entretanto,
sob o ponto de vista espiritual, essa imponderabilidade, esse acaso,
é muito importante.
Quando a arte tenta surgir do pensamento lógico, racional,
não tem sentido. A única
maneira de fazê-la aflorar é através do espírito.
Penso que a arte é o nível mais alto
a que pode chegar a expressão humana. E o
seu principal objetivo é transformar
a vida. A arte é sempre profundamente
relacionada com a vida e a morte, a alma
e o corpo. Algumas vezes é impossível
ao pensamento lógico compreender isso.
A arte tenta desvendar o mistério de
viver e morrer.
Irion – Como você cria suas performances?
Kazuo Ohno – Através de improvisações, a partir de uma idéia. Na
verdade, crio
a partir de uma profunda necessidade de expressão. Começo por
refletir sobre a vida.
Atualmente, estou interessado em ouvir a natureza, em
escutar o universo. Penso
que a natureza não é escrava do homem. Se não houver
uma relação homem-natureza,
o ser humano não poderá sobreviver, nem seu trabalho
existir. Vejo a dança de
"La Argentina" como uma parte da criação entre o céu e
a terra, um reflexo
dessa união. Meu trabalho sempre começa e termino dentro
dessa concepção
espiritual. Todo fenômeno universal tem sempre alguma coisa a
ver com a alma.
Toda manifestação natural, por mais ínfima que seja, representa
alguma coisa
espiritual. Assim, somos encorajados a pensar em Cristo, no amor,
na vida e na morte.
Irion – Você é religioso?
Kazuo Ohno –Sim, sou cristão. Sempre fui consciente do lado mau
da minha
personalidade. Assim que, através da religião, tento corrigir minhas
atitudes.
Irion – Nos seus espetáculos, o que chama a atenção é o forte
conteúdo improvisacional.
É certo?
Kazuo Ohno – Todo mundo deseja ter um fresh feeling todos
os dias. Eu também. Mas,
ao mesmo tempo, é difícil contar com isso. Sinto que
não sou capaz de ser uma pessoa
nova todos os dias. Mas também não posso ser o
mesmo de ontem, hoje e amanhã.
Neste sentido, não posso trazer para hoje o que
eu era antes, porque é um outro dia,
sou uma outra pessoa, nem outro tempo.
Sim, durante meus espetáculos faço improvisações.
Mas, para improvisar, é
preciso ter trabalhado muito antes. Só depois é que se pode f
azer uma
improvisação. As minhas performances nunca estão terminadas. Para mim é
impossível trazer para o palco algo concluído, pronto. Meus espetáculos são
sempre
inacabados, incompletos. Mesmo que eu planeje minuciosamente uma
coreografia,
simplesmente não consigo deixar de improvisar. Entre o nascimento
e a morte também
se improvisa muito.
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