maldito transgressor

maldito transgressor
A hipnose é tão aconchegante...
O costume a inércia...
A responsabilidade em ser inteiro adormecida...
A verdade miando lá fora na chuva...
A Televisão que faz o tempo passar tão rápido e confortável...

Não ouço mais os gritos seus
Não ouço mais os gritos meus
Não ouço mais os gritos
Não ouço mais
Não ouço
Não
Ñ
~

HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Clowns da peste! por Tiago Gonçalves

"Discutimos a potência do riso. A possibilidade de reconstruir, por meio do humor, a realidade atual. Trabalhar a sociedade para encarar o riso como forma de lidar com seus problemas."
Francis Lebarbier



Dentro ou fora da lona, o real tende a copiar o fantástico. Ou seria ao contrário? No caso dos clowns: o argelino Hugues Roche e o francês Francis Lebarbier, fanfarrões da La Compagnie Matapeste ou simplesmente Les Matapeste; a ordem dos fatores não altera as gargalhadas. Mesmo assim, a personalidade de cada um dos dois está, em certos momentos, ligada à essência do tipo de clown que executam.

Lebarbier, de 53 anos, intérprete de Charles Matapeste, se mostra tímido fora do palco. De palavras comedidas, feito criança no castigo, é a personificação do Clown Branco (palhaço sutil e requintado), um tanto melancólico. Do lado extremo, Roche, de 59 anos, o pai de Félix Matapeste, é o piadista da dupla. Sempre com uma gag na ponta da língua, guarda na casaca do temperamento características dignas do bom e velho Augusto (o palhaço extrovertido), entre elas o escracho.

Essa dicotomia clownesca pôde ser atestada durante o bate-papo da reportagem do Caderno C com os clowns, seja no camarim do Sesc-Campinas antes da apresentação de Noces do Clowns (do francês Bodas de Palhaços) ou no hall de entrada do Royal Palm Plaza, onde ficaram hospedados durante a temporada em Campinas, no começo de outubro de 2009.

A passagem de Les Matapeste (www.clownsmatapeste.com) pela cidade, durante a 12ª Semana Francesa de Campinas, e por outras cidades do País, vem ao encontro das comemorações do Ano da França no Brasil. A seguir, trechos da entrevista, que se configura mais como um papo amistoso entre este repórter, um aficionado por circo, e dois representantes do riso, do que qualquer outra coisa mais formal.

Agência Anhanguera — Les Matapeste não são de origem circense. Portanto, quais são suas primeiras referências de palhaço?

Hugues Roche — Sou de uma geração na qual o circo era bem tradicional e muito forte na França. Lembro de assistir às quintas-feiras na televisão um programa com clowns. Foi muito engraçado: anos depois que comecei a trabalhar como clown me lembrei de um fato na escola, quando eu tinha nove anos. A professora fez uma pergunta à classe: o que vocês gostariam de ser quando crescer? Eu disse: clown. Depois disso, esqueci.

Francis Lebarbier — Zavatta! Achille Zavatta (célebre clown da França). Tenho ele como uma lembrança engraçada de minha infância. Eu ria muito. Mas, nessa época, nunca pensei e nem tinha a pretensão de um dia ser clown. Mas sempre fui o engraçadinho de minha turma, da minha família. Desde os sete anos, já tinha uma disposição a fazer os outros rirem.

Mesmo não alimentando o mesmo sonho profissional, como que Hugues e Francis se encontram?

Lebarbier — Num grupo de teatro amador...

Roche — ...que levava o nome do bairro onde ensaiávamos, o Clos Bouchet, em Niort. Na época, estava com 26 anos...

Lebarbier — ...e eu com 17 anos. Na verdade, comecei a fazer teatro no colégio, a partir de 11 anos. Depois dos estudos, entrei para o teatro amador...

Roche — Eu era uma pessoa tímida, introspectiva. Eu precisar colocar para fora tudo o que eu tinha guardado dentro de mim. Já fazia teatro no meu dia a dia, mas não sabia até que chegou o momento de ir para o palco. Na primeira vez que fiz teatro, percebi que era a minha vocação.

Qual linguagem teatral permeava os espetáculos do grupo amador. Já havia uma queda pela graça?

Roche — Sim, basicamente humor.

Lebarbier — Estrutura de cabaré com esquetes cômicas envolvendo amor e os absurdos, paródias do cotidiano, caricaturas, marionetes... Misturando tudo isso com poesia e música.

Qual foi a motivação que tocou aquele grupo de teatro amador e o fez se interessar pela máscara do palhaço?

Roche — Em 1978, quando começamos efetivamente a fazê-los, foi justamente numa época de efervescência dos clowns. Foi um momento forte na França de entrada maciça dos espetáculos de clowns nas salas de teatros.

Lebarbier — Nessa época, muitas companhias, como os circos Archaos, Plume e Baroque, passaram a refletir sobre uma nova maneira de encarar o circo. Assimilando tudo isso, resolvemos desfazer o antigo grupo e montar nossa própria companhia.

A partir daí, direcionariam à pesquisa do grupo somente à arte dos clowns?

Roche — No começo, nossa companhia, que era formada basicamente pelas mesmas pessoas do grupo amador, seguiu uma linguagem que desenvolvemos durante um estágio de clowns que fizemos no norte da França. Do resultado desse trabalho, tivemos a oportunidade, dois meses depois da conclusão da oficina, de fazer um espetáculo de Natal usando a máscara do clown.

Lebarbier — Esse estágio foi uma revelação para nós dois. Gostamos daquele contato. Com essa linguagem de clown, percebemos que poderíamos reunir tudo o que a gente gostava e tinha feito, que era poesia, música, humor, absurdo, cabaré... E, com isso, tratar de coisas importantes como carinho, política, filosofia.

No início, o grupo se chamava A Pequena Companhia, mas descobriram que existia na França um grupoteatral já batizado com tal nome. Qual a razão de Les Matapeste?

Lebarbier — Matapeste trata-se de uma contração do Capitão Matamoros, da Commedia Dell’Arte, que era uma pessoa fanfarrona, pretensiosa, sem coragem com...

Roche — ...peste! Ele era uma peste!

Lebarbier — Escolhemos esse nome porque queríamos algo mais próximo de nossa realidade de pesquisa. Foi uma forma também de sintetizar os dois universos dos clowns: eu, como o Branco, e Hugues, como o Augusto.

Roche — Nasceu em 1980 como A Pequena Companhia Matapeste, que virou Companhia Matapeste e, por fim, só Les Matapeste...

De lá até cá, a companhia produziu 25 espetáculos, entre adultos e infantis, palco italiano ou rua. Quantos continuam no repertório?

Roche — Cinco: Clic Cac Les Z’amoureux, Les Matatchékov, a partir de Anton Tchekov; Noces de Clowns, Jonny Berouette e Effroyables Jardins, a partir de Michel Quint.

Lebarbier — Os três primeiros apresentamos no Brasil. Com a ajuda de um músico de Recife, que mora muitos anos na França, fizemos uma versão em português dos espetáculos.

Roche — Não foi muito fácil de se aprender o idioma, mas o português é uma língua muito agradável...

De onde vem a inspiração da companhia em revisitar clássicos da literatura universal assinados por Dante Aligheri, Miguel de Cervantes, Daniel Defoe ou Anton Tchekov?

Roche — Um dia um cenógrafo amigo, lendo A Divina Comédia, de Dante Aligheri, nos propôs uma adaptação. Assim fizemos La Divine Clownerie e foi o primeiro sucesso da nossa companhia. De fato, todas essas histórias, como também Don Juan, Robinson Crusoé e Os Cavaleiros da Távola Redonda, correspondem à nossa maneira de enxergar o clown. Trazem personagens originários da fragilidade ou das contradições humanas, como os clowns, que conduzem o ser humano à razão, à prudência ou à sensatez.

Lebarbier — Nossos clowns interpretam essas grandes histórias com muita sinceridade. Não fazemos paródias. De maneira, alguma! São inspirações.

Após o espetáculo Noces de Clowns, apresentado em Campinas, um palhaço brasileiro embevecido pela tradição europeia do clown quase mudo ficou admirado com o trabalho da dupla, no qual o texto tem papel fundamental. A palavra é íntima dos palhaços franceses?

Lebarbier — A maioria dos clowns franceses tem uma ligação muito forte com o texto. Aliás, tem um livro muito importante na tradição dos clowns da França, o Entradas de Clowns, que traz esquetes cômicas de várias épocas e em todas elas o texto está presente. Sempre há diálogos, ao contrário dos clowns russos, que estão mais ligados à pantomima. Quase não falam.

Roche — Por outro lado, trabalhamos com discípulos de Jacques Lecoq (mímico francês que defendia a mescla entre mímica objetiva e subjetiva), um exímio treinador da arte gestual. Gostamos muito da formação do treinamento de Lecoq relacionada ao bufão, enquanto à do clown e à da Commedia Dell’Arte, não. As achamos muito estereotipadas.


“Em muitos casos, a sociedade precisa do palhaço para recolocar em primeiro plano os verdadeiros valores de solidariedade e de compartilhamento.”
Hugues Roche


Em mais de 30 anos de atividades ininterruptas, Les Matapeste aterissaram em aproximadamente 40 países. Em algum deles, a dupla percebeu certa aversão à arte do clown?

Roche — Sim, mas nunca a ver com determinada cultura ou país e sim com classe econômica. Ao acreditar piamente em certezas pré-concebidas e não abrir mão delas por nada; o público da grande ou pequena burguesia não aceita a imagem do homem frágil e contraditório que tanto defendemos. O humor questiona as normas da sociedade, exclusivamente as que levam o indivíduo a negar seus desejos e fragilidades, e esse tipo de plateia não gosta.

A partir dessa consideração, vocês dividem a opinião de que a graça do palhaço não serve simplesmente para entreter?

Roche — O humor sobre si mesmo é compartilhado por todas as culturas e sob formas distintas: ao mesmo tempo em que toca em aspectos humanos como desejos de riqueza e poder ou normalidade; ele também atua no sentido inverso, o da submissão ou do fato da pessoa se passar por vítima. Em muitos casos, a sociedade precisa do clown para recolocar em primeiro plano os verdadeiros valores de solidariedade e de compartilhamento.

Lebarbier — Graças à força envolvente do riso, do sonho, da poesia, da imaginação e, também, do questionamento da ordem estabelecida, o clown se torna a grande figura de nossa sociedade.

Les Matapeste estão em turnê pela primeira vez no Brasil. Qual avaliação da dupla sobre a plateia brasileira?

Roche — As reações com nossas piadas são encontradas no mundo inteiro, mas no Brasil percebemos que o público gosta muito mais de participar dos espetáculos. Isso foi uma particularidade que encontramos muito em nossa turnê pelo País. Quando convidamos pessoas para subirem ao palco ou nos ajudar na trama, geralmente os espectadores morrem de vergonha. No Brasil, isso não acontece. As pessoas encarnam logo o personagem.

Lebarbier — Às vezes, temos que parar e agradecer a participação, porque senão eles querem continuar. Em Campinas, por exemplo, escolhi um senhor para ser um doutor no espetáculo Les Matatchékov e ele entrou de corpo e alma no personagem. Não queria ir embora...

A dupla conhece ou já teve a oportunidade de trabalhar com algum clown brasileiro?

Roche — Não.

Lebarbier — Não conhecemos...

Roche — Mas sabemos que há muitos clowns bons no Brasil. Infelizmente, nunca recebemos um brasileiro no encontro mundial de clowns que realizamos.

Apesar de configurar como a reunião de clowns de várias partes do mundo, o encontro Le Très Grand Conseil Mundial des Clowns, organizado por vocês, não é simplesmente uma vitrine artística para essa linguagem. Conte um pouco do propósito desse evento.

Lebarbier — Não é realmente um festival e sim um conselho, que se reúne a cada dois anos para falar e discutir problemas que existem no mundo. Nós convidamos o máximo de palhaços das mais possíveis nacionalidades e que utilizam a linguagem do clown de inúmeras maneiras...

Roche — ... para trabalharmos juntos cenas e organizarmos assembleias, que atuam tanto na vertente artística quanto na social e política. Estamos na quarta edição.

Lebarbier — Discutimos a potência do riso. A possibilidade de reconstruir, por meio do humor, a realidade atual. Trabalhar a sociedade para encarar o riso como forma de lidar com seus problemas. O festival aconteceu em junho desse ano e dois clowns, por exemplo, trabalharam a crise mundial. Cada um tinha uma solução para tentar, à sua maneira, solucionar esse problema.

Roche — Foram soluções de clowns...

(Publicado in Correio Popular - Caderno C, outubro/2009, p.08)

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