PISTAS SOBRE OS PROCEDIMENTOS CRIATIVOS NA LINGUAGEM DO PALHAÇO
Débora de Matos e Valmor Beltrame
Universidade do Estado de Santa Catariana – UDESC
Palhaço; Teatro de rua; Processo Criativo.
Este estudo objetiva apresentar resultados parciais da pesquisa Processos Criativos e
Princípios Técnicos na Linguagem do Palhaço, desenvolvida junto ao Programa de Pós-
Graduação, Mestrado em Teatro na UDESC. Neste texto, nossas atenções estão voltadas ao processo criativo de um dos três palhaços selecionados para o corpo de análise da pesquisa: o palhaço Chacovachi (Fernando Cavarozzi).
A linguagem do palhaço configura-se como forma de expressão cênica, valendo-se de
algumas especificidades, dentre as quais destacamos: a exposição exagerada dos próprios sentimentos do artista; sua interação com o público, de forma direta, recorrendo ao contato pessoal e único estabelecido com os presentes; sua capacidade de provocar o riso na platéia,instigando-a à experimentação de diversos sentimentos. Livre, exagerado nos próprios sentimentos e com o fim de fazer rir, o palhaço é dono de uma composição gestual que se apóia na contradição, no exagero e na busca de revelar o artista: seu ridículo e seus sentimentos.
Herdeira do manifesto da cultura cômica popular, a linguagem do palhaço serviu-se por
longos anos de técnicas que deram suporte à prática do artista popular: música, dança, mímica,acrobacia. As técnicas auxiliavam o artista a seduzir o público, promover o riso e provocar inquietações lançadas numa lógica às avessas em contraposição à lógica oficial. A formação profissional do palhaço revelou-se, tradicionalmente, radicada à reminiscência oral. Essa prática contempla o exercício da comunicação, a aquisição de habilidades técnicas e o acumulo de
funções: o artista é capacitado a atuar, conceber seu texto e dirigir seu número. Estudos sobre a sistematização dos procedimentos técnicos que caracterizam o trabalho do palhaço vêm se fortalecendo desde as últimas décadas do século XX.
Após a formação do repertório técnico, o trabalho do palhaço sustenta-se mais na
articulação do seu arsenal criativo, construindo variações no contato com o público, do que na constante busca da criação. A sistematização da prática confia ao cômico um acervo técnico,conferindo-lhe liberdade no diálogo com o público e com o companheiro de cena. Numa relação direta e real, o artista torna-se atento aos aspectos acidentais decorridos da platéia, incorporandoos à representação.
Percebemos no processo criativo do palhaço Chacovachi que sua construção artística
provém do empirismo das habilidades corpóreas, concedendo-lhe estado de presença e dilatação da capacidade interativa. Chacovachi é um palhaço argentino que direciona sua prática ao específico da linguagem da rua. É conhecido como Palhaço Filósofo ou Terceiro-Mundista pela forma peculiar com que articula e desarticula o riso da platéia com suas provocações e delírios.
Embora convivamos com momentos de sublimidade, encontramos em sua expressividade
a forte presença de um gestual grotesco. O grotesco refere-se a uma acentuação estética e ideológica, comumente ligado ao “baixo corporal” e ao material. Vinculado ao tragicômico,valoriza o equilíbrio instável, provindo da combinação harmoniosa entre o risível e o trágico. A comédia contém, implicitamente, a tragédia, no que assim não sendo, revela-se uma comédia inacabada (FRYE apud PAVIS, 1999: 420). O tragicômico e o grotesco promovem uma comicidade que confronta o riso à inquietude. A tragédia e a comédia, o grotesco e o sublime são alguns dos múltiplos paradoxos que compõem a linguagem do palhaço.
Segundo Chacovachi, a criação do número, no trabalho do palhaço, contempla um nível
técnico (habilidade técnica necessária para desenvolver um determinado número); um artístico (recursos utilizados como a música, o figurino, a forma com que se comunicará); e um criativo (a forma de articular todos esses elementos). Contudo, o desenrolar final deve estar ligado ao palhaço: ao divertir e provocar 2. Segundo Chacovachi, um número se torna um número quando é possível alguém “roubá-lo”. Ou seja: somente depois de codificada a seqüência de ações(incluindo, de forma sistemática, os momentos de interação) é que o palhaço tem seu número
“concebido”. Não temos dúvida, porém que a construção do arsenal criativo resulta da
experimentação adquirida, sobretudo, através dos elementos acidentais e improvisados nas representações, e que, ao funcionar bem, o artista segue repetindo até levá-lo à codificação,integrando-o ao repertório.
Ao iniciar sua jornada artística Chacovachi instalava-se em praças de Buenos Aires pelos finais de semanas. Seu material limitava-se a reprodução de números que observava no trabalho de outros cômicos. Entretanto, a rotina de ir às praças todas as semanas, serviu-lhe de escola. A experiência da rua lhe permitia muitas possibilidades de estudo. Com o passar dos anos e com as viagens a festivais, o palhaço argentino expande suas fronteiras artísticas de forma a ir criando
seu próprio material cênico. Passa a colocar sua visão de mundo em sua arte 3.
Chacovachi arquiteta seu atual espetáculo Cuidado, un payaso malo puede arruinar tu
vida em três números: no primeiro, o palhaço provoca-nos, mostrando quão fácil o ser humano é enganado, mesmo por aquele que acabou de lhe dizer que o enganará; o segundo, a tradicional tortada na cara, Chacovachi faz com que, em poucos minutos, uma pessoa do público que estava ali sem saber que assistiria a uma apresentação, jogue uma torta em seu próprio rosto, diante das demais pessoas, sem sentir-se mal; no terceiro, Chacovachi revela-nos com jocosidade até onde o palhaço vai para conseguir divertir seu público, mesmo sem ter a garantia de consegui-lo. Os
números são permeados de chistes que ele lança conforme o jogo com o público.
A estrutura do espetáculo de rua para Chacovachi adota a seguinte armação: a pré-préconvocatória,o artista não é reconhecido como tal, mas já chama atenção; a pré-convocatória,mostra-se como artista, organiza seu espaço e seu figurino; a convocatória, convida os espectadores ao espetáculo, objetiva agregar pessoas; a farsa do começo, jogo com espectadores,agrega pessoas e estabelece cumplicidade; os números, utiliza números de habilidades e participativos; a passada do chapéu - provoca expectativa e jocosidade; o número final, número curto de despedida.
Cada palhaço encontra sua forma própria de estabelecer o diálogo com seu público: “cada um tem uma técnica própria de prender a atenção, instigar e provocar reações ativas na platéia”(PUCCETTI in FERRACINI, 2006: 143).
Chacovachi, em sua atitude criativa, não nos faz rir de quedas ou da construção de um tipo “tonto”. Seu espetáculo nos diverte num humor amargo e inquietante. As situações que nos fazem rir são, também, argumentos a nos convidar a chorar.
O diálogo com o público proporciona distintas formas de proceder a cada apresentação.
Como num jogo de xadrez, metáfora utilizada por Chacovachi para refletir sua prática artística, o palhaço tem determinadas peças e conhece as regras do jogo. Nesse jogo o rei representa a dignidade e a energia, não pode perder. A Rainha é a personalidade e a atitude, qualidades imprescindíveis para mover-se no jogo. Bispos, Torres e Cavalos são os números, você pode cambiá-los conforme o público se move. Os peões são suas gags e chistes: piadas curtas que você gasta para avançar no jogo. O palhaço mexe suas peças conforme o jogo com o público. Logo,com o mesmo material o palhaço articula de diferentes modos seu espetáculo. Cada apresentação
revela-se única, pois cada público tem sua forma de mover-se, exigindo do artista diversas respostas.
Assim, embora Chacovachi possua uma seqüência codificada de ações e interações, ao
observarmos realizar tal seqüência em diferentes apresentações, percebemos que suas ações estão carregadas de frescor. Se por algum instante lamentamos que não tenha utilizado um comentário que na apresentação anterior nos pareceu tão admirável quando já não lembrávamos mais, ele lança-o, surpreendendo-nos novamente.
O processo criativo de Chacovachi mostra-se apoiado num gestual que combina mistério
e desvelamento, engano e desengano, tendo na contraposição entre trágico e cômico, grotesco e sublime a promoção da ilusão e do distanciamento com que o artista manipula conscientemente o público. O exagero e a contradição são aspectos valiosamente explorados na cena do palhaço argentino. Embora sua rotina esteja estruturada, sabendo quais instrumentos utilizará em cena,sua disponibilidade de estabelecer uma relação real com as pessoas presentes, que lhe proporcionam reações diversas e, por vezes, não esperadas, corrobora com a vivacidade de suas ações, que aos nossos olhos parecem improvisadas. Sob o suporte de uma estrutura codificada o
palhaço reage, improvisa suas ações, adaptando-as continuamente em função de seu estado interno, sua lógica de ação e a relação que estabelece com o meio, especialmente, com o público.
Algumas escolas de ator direcionam parte de seu programa ao estudo da arte do palhaço (Ecole International de Theatre Jacques Lecoq, Ecole Philippe Gaulier). No Brasil, assistimos ao crescimento dos cursos voltados à formação:
Ricardo Puccetti (Lume); Ésio Magalhães (Barracão Teatro); João Artigos (Teatro de Anônimo); outros.
CHACOVACHI, Fernando Cavarozzi. Entrevista concedida a Débora de Matos, especialmente para a dissertação de Mestrado, 2008.
Vale mencionar que há dez anos Chacovachi organiza um circo que todos os anos juntam-se alguns artistas com diferentes habilidades e, num intercâmbio, montam um espetáculo que mescla a linguagem do circo à da rua.
Bibliografia
FERRACINI, Renato (Org.). Corpos em Fuga, Corpos em Arte. São Paulo: Aderaldo & Rothschild
Editores: Fapesc, 2006.
PAVIS, Patrice.
sábado, 23 de janeiro de 2010
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