domingo, 25 de abril de 2010
I Clowns - Fellini
Você sabe, Sr. Fellini? Uma vez eu fiz um número com um amigo meu chamado Frufru. Ele fingiu que estava morto. Entrei na pista e disse: "Onde está Frufru?" Você não sabe? - Disse o diretor - Está morto. "Morto?" - eu disse - ele ainda tinha que devolver a dez velas e salsichas que eu o emprestei no ano passado!" Bem, ele está morto ", o diretor me disse. "Onde posso encontrá-lo?", Digo. "Mas, cretino, se lhe digo que está morto!". Então eu, que que não me dava por vencido, me meti a chamá-lo: "Frufru, Frufru!". Nada, nenhuma resposta. "Será que está realmente morto? - Eu disse. - "E se ele está morto, como posso encontrá-lo?" Não se pode simplesmente desaparecer desse jeito, eu disse, em algum lugar tem que estar. "Frufru! Frufru!" Até eu ter uma idéia: vou chamar com a trombeta, como quando ele trabalhou comigo. Então eu começo com a trombeta. O som das primeiras notas, eu ouço ... nada. Tentei novamente. Era uma canção muito bonita que o fez chorar. Foi assim ... "
Sinopse
O alter ego de Fellini neste filme é um garoto que vai ao circo pela primeira vez. Enquanto os palhaços fazem suas brincadeiras, Fellini aproveita para criticar os próprios críticos de cinema, através do personagem de um jornalista que fica perguntando “o que isso significa?”. O filme sustenta sua exuberância na total falta de seriedade, incluindo o próprio Fellini, no papel de diretor pretensioso que, com sua equipe, tenta fazer um documentário com os grandes circos e seus palhaços. O filme foi feito originalmente para a TV italiana.
Elenco
Federico Fellini
Riccardo Billi
Tino Scotti
Fanfulla
Dante Maggio
Galliano Sbarra
Nino Terzo
Giacomo Furia
Carlo Rizzo
Gigi Reder
Alvaro Vitali
Anita Ekberg
Pierre Étaix
Annie Fratellini
Charlie Rivel
Informações Técnicas
Título no Brasil: Os Palhaços
Título Original: I Clowns
País de Origem: França / Itália / Alemanha
Gênero: Comédia
Classificação etária: 12 anos
Tempo de Duração: 91 minutos
Ano de Lançamento: 1971
Estúdio/Distrib.: Mais Filmes
Direção: Federico Fellini
Fellini celebra o mundo do circo em Os Palhaços
"Freud quer explicar quem somos, Jung abre as portas do inconsciente e deixa que descubramos sozinhos". A frase de Federico Fellini dá pistas preciosas sobre sua intenção ao filmar Os Palhaços (1970). A estréia desta sexta-feira é inédita comercialmente no Brasil e o filme foi produzido originalmente para a televisão italiana.
Pela mão, como quem conduz uma criança, o diretor italiano leva o espectador através do mundo mágico do circo, passando por leões, atiradores de facas, faquires e palhaços. A divertida trilha sonora de Nino Rota embala esse universo onírico que se afasta da realidade para buscar abrigo em nossos corações.
Já de início, um garoto acompanha fascinado, pela janela do quarto, a montagem de um circo no terreno em frente a sua casa. No dia seguinte, enquanto assiste ao espetáculo, se assusta com os palhaços e deixa, aos prantos, a platéia.
Aparentemente autobiográfica, essa seqüência ilustra o início de uma verdadeira obsessão do diretor pelo tema, confirmada em muitas de suas produções.
Mas é ao explicar o motivo do espanto do menino que Fellini começa a aproximar o mundo fantasioso do circo à realidade humana, personalizada em uma freira anã que fala sozinha, num homem bêbado cuja mulher o leva para casa num carrinho de mão ou mesmo na sra. Inês, que sabe de cor todos os discurso de Mussolini.
A desculpa de Os Palhaços para essa busca do humano é uma produção documental cujo objeto de estudo são os "clowns". O próprio Fellini lidera a trupe de atrapalhados profissionais que vagam pela Itália e pela França resgatando um pouco da história do circo.
O filme, entrecortado com depoimentos e espetáculos grandiosos, faz um divertido contraponto ao fundir a briga de palhaços no picadeiro com a discussão entre antigos "clowns" num bar qualquer da Itália.
Toda a ambigüidade humana em Os Palhaços está representada pela figura de dois deles, o branco e o augusto. O primeiro é a imagem da elegância, da inteligência e do moralismo, o que o aproxima do indivíduo adulto.
O augusto é seu oposto, atrapalhado, distraído e bagunceiro, algo como uma criança que se rebela diante do rigor imposto pelo branco. Mais uma vez, o diretor esclarece: "Freud é um branco, Jung um augusto".
O estudioso do assunto Tristan Remy defende que o palhaço está definitivamente morto. O filme encena, então, a morte do augusto. No discurso diante do "cadáver", é recitada uma lista de impropérios: em sua longa e deplorável existência, o augusto se dedicou a jogar baldes de água na cabeça dos outros, a distribuir beliscões e pontapés e por aí vai.
No entanto, a belíssima cena final marca a união de branco e augusto, simbolicamente representando o adulto e a criança que convivem lado a lado no ser humano.
Sobre o clown - Federico Fellini
O clown é como a sombra
Tenho sob os olhos, entre outras muitas, uma definição do clown feita por meu conterrâneo Alfredo Panzini, no Diccionario Moderno:
“CLOWN - palavra inglesa (pronuncia-se cláun) que quer dizer rústico, rude, torpe, indicando depois quem com artificiosa torpeza faz o público rir. É o nosso palhaço.”
Mas também aqui existe a mesma miserável diferença do termo estrangeiro que enobrece a coisa. O palhaço é mais de feira e praça, o clown, de circo e palco. Um bom acrobata é um clown, isto é, quase um artista, e julgará imprópria e ofensiva a expressão palhaço. Mas clown designa também o palhaço. O próprio Carducci, defensor do vernáculo, nas prosas polêmicas de Confessioni e Bataglie, capítulo Ça ira, não desdenha a palavra.
Neste tempos de nacionalismo, que direi eu? Bem, o clown encarna os traços da criatura fantástica, que exprime o lado irracional do homem, a parte do instinto, o rebelde a contestar a ordem superior que há em cada um de nós.
É uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador. É um espelho em que o homem se reflete de maneira grotesca, deformada, e vê a sua imagem torpe. É a sombra.
O clown sempre existirá. Pois está fora de cogitação indagar se a sombra morreu, se a sombra morre.
Para que ela morra, o sol tem de estar a pique sobre a cabeça. A sombra desaparece e o homem, inteiramente iluminado, perde seus lados caricaturescos, grotescos, disformes. Diante duma criatura tão realizada, o clown, entendido no aspeto disforme, perderia a razão de existir. O clown, é evidente, não teria sumido, apenas seria assimilado. Noutras palavras, o irracional, o infantil, o instintivo já não seriam vistos com o olhar deformador que os torna informes.
Por acaso São Francisco não definiu a si mesmo como jogral de Deus?
Lao Tsé afirmava: “Quando produzas em pensamento, te ri dele.”
O branco e o augusto
Quando digo o clown, penso no augusto. Com efeito, as duas figuras são o clown branco e o augusto. O primeiro é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, que se propõem de forma moralista, como as situações ideais, únicas, as divindades indiscutíveis. Eis que em seguida surge o aspeto negativo da questão. Pois dessa forma o clown branco se converte em Mãe, Pai, Professor, Artista, o Belo, em suma, no que se deve fazer.
Então o augusto, que devia sucumbir ao encanto dessas perfeições, se não fossem ostentadas com tanto rigor, se rebela. Vê as lantejoulas cintilantes, mas a vaidade com que são apresentadas as torna inalcançáveis. O augusto, que é a criança que faz sujeira em cima, se revolta ante tanta perfeição, se embebeda, rola no chão e na alma, numa rebeldia perpétua.
Essa é a luta entre o orgulhoso culto da razão, onde o estético é proposto de forma despótica, e o instinto, a liberdade do instinto.
O clown branco e o augusto são a professora e o menino, a mãe e o filho arteiro, e até se podia dizer que o anjo com a espada flamejante e o pecador. São, em suma, duas atitudes psicológicas do homem, o impulso para cima e o impulso para baixo, divididos, separados.
O filme [I Clowns] termina com as duas figuras se encontrando e desaparecendo juntas. Por que comove essa situação? Porque as duas figuras encarnam um mito que está dentro de cada um de nós – a reconciliação dos opostos, a unidade do ser.
A dose de dor que existe na guerra contínua entre o clown branco e o augusto não se deve às músicas nem a nada parecido, mas ao fato de presenciarmos a algo que se liga à nossa própria incapacidade de conciliar as duas figuras. Com efeito, quanto mais procures obrigar o augusto a tocar violino, mais dará soprinhos com o trombone. O clown branco ainda pretenderá que o augusto seja elegante. Mas quanto mais autoritária seja essa intenção, mais o outro se mostrará mal e desajeitado.
É o apólogo de uma educação que procura pôr a vida em termos ideais e abstratos. Mas Lao Tsé dizia com acerto: Quando produzas um pensamento (= clown branco), te ri dele (=clown augusto).
Outra versão do par
Neste ponto, também podia citar a famosa antítese popular chinesa entre ying e yang, o frio e o sol, a fêmea e o macho, todos os possíveis contrastes. Podia-se falar de Hegel e da dialética, acrescentar que os augustos são, mais justamente, uma imagem subproletária do pátio dos milagres, com desnutridos, disformes, marginais, capazes talvez de revoltas, não de revoluções. É provável que o povo sempre os tenha tratado com confiança por causa de sua condição miserável, sentindo-se familiar ao abismo.
Os Fratellini foram os que introduziram um terceiro personagem, o “contre-pitre”, parecido ao augusto, mas que se aliava ao patrão. Era o vigarista de rua, o espião, alcagüete da polícia, o liberado a se mover nas duas zonas, a meio caminho da autoridade e do delito.
Com exceção de François Fratellini, que fazia um aéreo clown branco, cheio de graça e amabilidade, incapaz de usar o tom acre da gozação para um mais fraco, todos os clowns brancos eram homens muito duros. Diz-se que Antonet, um afamado clown branco, fora de cena nunca dirigiu a palavra a Beby, que era o seu augusto. O personagem influenciava o homem e vice-versa. Uma das regras do jogo é que o clown branco tem de ser malvado. Ele dá bofetadas.
O augusto: - Tenho sede.
O clown branco: - Tem dinheiro?
O augusto: - Não.
O clown branco: - Então não tem sede.
Outra tendência do clown branco é explorar o augusto, não apenas como objeto de burla, mas como serviçal. Neste ponto, é característico este início: - Não tens que fazer nada, eu faço tudo. – E o clown branco manda o augusto pegar as cadeiras, pondo-lhe a fela sob o traseiro.
O clown branco é um burguês, que de entrada procura surpreender com sua aparência de rico, poderoso, maravilhoso. O rosto é branco, espectral, franze as sobrancelhas, a boca é assinalada por um só traço, duro, antipático, frio, desigual. Os clowns brancos sempre competiram para ficar com o traje mais luxuoso na luta dos figurinos. Célebre foi Theodore, que possuía uma roupa para cada dia do ano.
O augusto, pelo contrário, faz um tipo único que não muda nem pode mudar de roupa. É o mendigo, o menino, o esfarrapado…
A família burguesa é uma junta de clowns brancos, em que a criança se vê relegada à condição de augusto. A mãe diz: Não faças isso, não faças aquilo… Quando se convidam os vizinhos e se pede à criança que diga uma poesia – Mostra a esses senhores como… – é uma típica situação de circo.
Ser augusto é bom para a saúde
O clown branco assusta as crianças por representar o dever ou, empregando uma palavra na moda, a repressão.
A criança se identifica de saída com o augusto, na medida em que esse se parece com um patinho feio ou um cachorro e é maltratado, e por isso quebra os pratos, se retorce no chão, se atira baldes d’água no rosto. É o que a criança gostaria de fazer e os clowns brancos, os adultos, a mãe, a tia, impedem que faça.
No circo, através do augusto, a criança pode imaginar que faz tudo o que está proibido, se vestir de mulher, armar surpresas, gritas, dizer em voz alta o que pensa.
Aqui ninguém te repreende. Pelo contrário, te aplaudem.
(…)
Minha cidadezinha se transforma num toldo
A chegada do circo durante a noite, na primeira vez que o vi, ainda criança, teve o cunho de uma aparição. Um mundo novo, não precedido por nada. Na noite anterior não existia e, na manhã seguinte, ali estava, diante da minha casa.
De saída, pensei se tratar de um barco desproporcional. Logo a invasão, pois foi isso, uma invasão, estava ligada com algo de marinho, uma pequena tribo pirata.
Então, além do medo, o fascínio pelo clown, surgido desse clima marinho, foi definitivo.
Ao clown principal, Pierino, vi na pequena fonte, no dia seguinte à estréia. Poder tocá-lo, ser ele!
Totó, seu irmão, era um clown branco pobre. Trabalhava com uma camisa, uma gravata e umas calças de fustão.
Fazer rir me pareceu algo extraordinário, uma sorte, um privilégio.
No espetáculo de domingo à tarde, sem o toldo, perto da cadeia, os presidiários gritavam atrás das grades. Totó se dirigiu duas vezes a eles. Como um clown branco, fazia outros augustos infelizes.
Daquele momento em diante, minha cidade se transformou insensivelmente num grande toldo. Sob esse estavam os augustos, junto com o prefeito e o chefe fascista local vestidos de clowns brancos.
A insatisfação que os clowns brancos traziam, também se podia achar em figuras dementes da cidade, sobretudo os augustos, mais que os clowns brancos. Essas figuras eram lembradas em casa como bichos-papões. “Se não comes o espinafre, vais ficar como o Giudizio” – dizia minha mãe.
Giudizio era justamente um augusto de circo. Um capote militar cinco ou seis vezes maior que o corpo, sapatos de borracha branca até no inverno, uma manta de cavalo nos ombros. Mas possuía sua dignidade, como o mais esfarrapado dos palhaços. Fitava um Isotta Fraschini resplendente e, com uma bagana nos lábios presa por um alfinete, afirmava: “Nem de presente, ficaria com ele.”
Mas o clown branco, com seu encanto lunar, a elegância noturna, espectral, lembrava a fria autoridade de algumas monjas diretoras de asilos; ou a certos fascistas pretenciosos, com as brilhantes sedas negras, os alamares dourados, o rebenque (como a pazinha do clown), os capotões, o fez e os adornos militares, homens ainda jovens com os rostos pálidos dos capangas, dos notívagos.
(…)
O jogo do clown branco e do augusto
O mundo, não só minha cidade, está povoado de clowns.
Quando estive em Paris para este filme, imaginei uma seqüência, que depois não rodei, em que, andando de táxi, de tanto falar nos clowns, podia-se vê-los na rua. Velhas ridículas com chapéus absurdos, mulheres com sacolas de plástico na cabeça para se proteger da chuva, chapéus e casacos que encolheram, homens de negócios com pastas típicas e um bispo, de aspeto embalsamado, sentado num auto junto ao nosso.
Se me imagino um clown, creio que sou um augusto. Mas também um clown branco ou, talvez, o diretor do circo. O médico de loucos que, por sua vez, enlouqueceu.
Continuemos a prova. Gadda era um belo augusto. Mas Piovene é um clown branco. Moravia, um augusto que desejaria ser branco. Melhor, é um Monsier Loyale, o diretor do circo, procurando conciliar as duas tendências e se manter num terreno objetivo, imparcial. Pasolini é um clown branco do tipo engraçado e sabichão. Antonioni é um augusto desses silenciosos, murchos, tristes. Parise pode ser tudo, um augusto mendigo, sempre meio bêbado, e também um clown branco impertinente, acerado, misógino, dos que esbofeteiam o augusto sem mesmo lhe dar uma explicação.
Picasso? Um augusto triunfal, presunçoso, sem complexos, que sabe fazer tudo e no fim é quem vence o clown branco. Einstein, um augusto sonhador, encantado, que não fala, mas no último instante tira, cândido, do bolso a solução do enigma proposto pelo atilado clown branco. Visconti, um clown branco de grande autoridade, cujo faustoso traje impressiona. Hitler, um clown branco. Mussolini, um augusto. Pacelli, um clown branco. Roncalli, um augusto. Freud, um clown branco. Jung, um augusto.
O jogo é tão certo que, se te vês por acaso ante um clown branco, tendes a ser um augusto, e vice-versa.
O chefe de produção da minha fita era um clown branco. Assim, os outros no convertíamos em augustos. Apenas a aparição de um clown branco mais ameaçador, o fascista, nos transformava também em clowns brancos, desde o momento em que lhe respondíamos, disciplinados, com a saudação romana.
Apenas a destrambelhada aparição de Giovannone, o augusto que assustava as camponesas lhes mostrando o membro como uma lebre morta, surpreso de conviver com esse inquilino que aceitava, nos mudava em clowns brancos quando lhe dizíamos: “Mas o que estás fazendo, Giovannone?”
Até na missa essa relação tinha lugar. Acontecia entre o sacerdote e alguns sacristães, que andavam entre os bancos da igreja interrrompendo o rito, com olhos apagados e alcoolizados, a pedir esmola.
(1) Este texto é um excerto do comentário que fez Fellini a seu filme I Clowns, feito para a televisão em 1970.
In “Fellini por Fellini”, L&PM Editores Ltda., Porto Alegre, 1974, págs. 1-7. Tradução de Paulo Hecker Filho.
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