maldito transgressor

maldito transgressor
A hipnose é tão aconchegante...
O costume a inércia...
A responsabilidade em ser inteiro adormecida...
A verdade miando lá fora na chuva...
A Televisão que faz o tempo passar tão rápido e confortável...

Não ouço mais os gritos seus
Não ouço mais os gritos meus
Não ouço mais os gritos
Não ouço mais
Não ouço
Não
Ñ
~

HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Teatro físico e criação.

Matéria minha no site O Palco - http://www.opalco.com.br/


REFLEXÕES SOBRE O TEATRO FÍSICO



                                                                            Danilo Dal Farra


O que é Teatro Físico? Como, na prática, esse tipo de pesquisa pode atuar no processo de construção de um espetáculo? Confira o texto dos atores-criadores Danilo Dal Farra e Lívia Rios sobre a concepção corporal na construção cênica.

Muitos estudantes de teatro ou interessados no assunto já ouviram falar em Teatro Físico. Mas afinal, o que isso significa? Será que atuar no teatro já não pressupõe essa tal fisicalidade? Desta forma, todo tipo de teatro não seria um Teatro Físico? Vejamos:

O termo Teatro Físico é usado para descrever qualquer forma performática que se dedica e se baseia em contar uma história essencialmente através da fisicalidade do corpo. Trata-se, portanto, da construção de formas compreensíveis ao imaginário coletivo, feitas apartir do corpo do ator. O Teatro Físico pode explorar um texto pré-existente ou incorporar um texto partindo da fisicalidade, mas o foco principal está no trabalho físico do intérprete e a expressividade através de seu corpo.

Esta é uma forma de teatro extremamente visual. Isso porque as ações em Teatro Físico podem ter uma base psicológica, um ponto emocional, ou um texto como base, mas é a expressividade do corpo do ator que irá de fato contar a estória que se deseja, pois o corpo é o principal comunicador de signos e símbolos cênicos. São várias as formas de pesquisa de movimentos, como a pesquisa através de formas codificadas, o trabalho de improvisação, a pesquisa de uma linguagem gestual própria inserida num espaço físico real, entre outras.

Esse trabalho de pesquisa é prático, evidentemente, pois estamos falando de movimento corporal. Mas alguns já relataram um pouco de suas experiências e podemos aprender com elas, entender melhor o que significa esse processo de pesquisa. É o caso do ator Danilo Dal Farra, que relata o processo de criação de um espetáculo, baseado nas técnicas do que chamamos de Teatro Físico.

Danilo é ator, palhaço e bailarino de Butoh que se formou inspirado na pesquisa do grupo LUME. Em dez anos de experimentações corporais, desenvolveu pesquisas práticas dentro de três linhas mestras de trabalho: o Clown, a Performance Essencial e o Butoh. Atualmente converge suas pesquisas e seu método de treinamento em uma única poética na construção da peça "Amor Talhado e a Flor de Mulungum" escrita por ele e tendo orientação inicial de treinamento de Carlos Simioni.

A seguir você pode conferir a reflexão de Danilo, feita em parceria com a atriz Lívia Rios, que o acompanha nesse processo de construção da peça.

MULUNGUM PEÇA EM PROCESSO.

O CORPO CRIADOR A PARTIR DE TÉCNICAS DE TEATRO FÍSICO.

Eu e Lívia desenvolvemos essa reflexão sobre o momento do devir criativo baseados no nosso processo específico dessa peça. Nele, a partir do nosso repertório técnico, criamos caminhos próprios, orgânicos, de concepção de cena.

Sobre essa criação e sobre o devir do corpo criativo, segue esse papo meu (Danilo) ator e autor da peça, com a Livia (Atriz da peça e parceira de concepção de treinamento):

Como é, dentro desse processo específico, a concepção corporal e criação de cena?

Vou tentar refletir usando um exemplo recente de uma cena do "Mulungum" . A gente estava trabalhando com mímeses. Selecionei algumas referências pro personagem principal, algumas fotos e quadros naquele momento, então surge essa foto de um ator interpretando Jesus sendo crucificado. É no momento exato que estão martelando um dos pregos em sua mão e Jesus tem um forte olhar pra esse algóz que o está crucificando.

Para prepararmos o corpo, no dia em que eu iria trabalhar essa foto, passamos por um processo de níveis de tensão. Começamos criando tensões em partes diferentes do corpo e relaxando o resto do corpo, trabalhando esse isolamento. Depois distribuindo isso e dançando a partir dessas tensões. Deixando movimentos surgirem, chamados por essas tensões.

Dançamos com vários níveis diferentes de tensão que percorriam o corpo, inspirados na pesquisa do Lecoq dos níveis de tensão. Distribuímos isso pelo corpo, criando também diferentes níveis de tensões simultâneos por todo o corpo e dançando a partir disso. Dançamos durante uma hora, depois colocamos músicas e ficamos experimentando as sensações dessa dança das tensões e da influência sonora.

A seguir, deixamos de pensar nas tensões e dançamos mais meia hora livres, com essa memória recente já impressa no corpo. Nesse estado, fui olhar a foto novamente e dançar a partir das impressões e das fisicalidades desse registro. Começo a dançar e, depois de um tempo, surge uma cena. Nesse momento eu sinto que meu corpo pediu, muito mais que minha razão, uma movimentação pra expressar essa sensação em que eu me coloco.

Me lembro então que o Simioni, assistindo a uma das cenas, me sugeriu que eu tentasse fazê-la imóvel, só com exploração de voz, ressonadores, expressões faciais e movimentos da cabeça. A sensação dessa cena que foi sendo criada, após a dança dos níveis de tensão e a influência da foto, me trouxe na hora para aquela outra experiência da cena sugerida pelo Simi.

Isso porque eu estava fazendo uma mímese de uma foto de um ser crucificado, preso, imóvel e minha memória muscular, dentro do "jogo" dos níveis de tensão, me trouxe para essa sensação novamente. De repente tudo se encaixa: o poeta, o personagem principal, nessa cena que o Simioni propõe, está imóvel fazendo um texto sobre o amor, tratando do exato momento em que Deus expulsa Adão e Eva do paraíso. Fisicamente compreendi o olhar externo do Simi e sua orientação pra minha cena. O poeta se identifica com o Adão do poema que, mesmo perdendo o paraíso, expressa sua crença no amor. A imobilidade do Adão, vivida pelo poeta diante da destruição do paraíso, me remete a essa imobilidade de Jesus sendo pregado na cruz. Esse algóz da foto que prega a mão de Jesus, nesse instante, passa a ter, pra mim, na minha criação, o mesmo poder do Deus que encerra o paraíso, e Adão passaria a ser Jesus Cristo sendo punido. Na história da peça o Poeta acabara de perder seu filho por não conseguir cumprir um pacto com Deus. A dor vivida por Adão, Jesus e o Poeta, é de um mesmo cenário poético simbólico.

Conto esse desenrolar todo só pra que se tenha uma idéia de tudo que se gerou a partir de uma comoção corporal e alguns elementos físicos aplicados nesse instigar, para fazer esse corpo reagir criativamente. Não que essa história seja necessária, na verdade não é a intensão tentar explicar o movimento e criar a história para traduzi-lo. Simplesmente essa é a história em que eu estou mergulhado no momento e meu corpo reage em relação a ela e aí a criação se faz. São maneiras diferentes em momentos diferentes de se chegar a esse ponto de criação. Como na cena de Deus, que eu achei a partir de um trabalho com o corpo do santo, técnica do LUME. Aí, eu acredito, está a ponte clara: o treinamento inserido na peça. Junto ao trabalho de dilatação e presença cênica.

Um outro elemento importante pra gente foi a opção da colcha de retalhos como proposta também de processo de criação da peça. Porque uma cena surge do trabalho de mímese unido ao trabalho dos níveis de tensão, outra cena surge do trabalho com o corpo do santo somado ao dançar fenômenos da natureza e a dinâmica com o objeto. Eu não pensei: Hoje vou fazer uma cena misturando essas técnicas . Essas cenas surgiram do treinamento. E aí o diferencial para cada ator-criador. Porque a cena não se baseia num mesmo texto. Várias pessoas podem trabalhar essas técnicas, mas não é a técnica em si, é a comoção de um corpo único. Várias pessoas podem ter interpretações diferentes de um texto também, considerando as diferentes vivências de cada um, mas, ao meu ver, a limitação é maior porque vivemos sob muitos padrões de comportamento semelhantes.

O corpo, quando está realmente desarmado, mente menos do que a razão. Temos muito mais habilidade em disfarçar a partir da mente. O corpo traz respostas mais orgânicas quando desarmado. Logicamente, não visamos aqui colocar um contra o outro ou separá-los. Os dois estão sempre juntos, é simplesmente deixar o corpo guiar um pouco mais do que normalmente estamos acostumados.

A variação das técnicas para se instigar o corpo também foi um caminho interessante pra gente. Cenas surgiram a partir de danças livres de Butoh, outras a partir da improvisação pós-exaustão. Trabalhamos e pensamos muito numa unidade ao final, mas deixamos a criação falar primeiro. Foi importante também ter tido um trabalho forte com o corpo do personagem, para ele se comover e se transformar com a textura de cada cena, mas ainda manter uma certa estrutura e não se misturar com a minha corpo cotidiano do Danilo.

O Zé é uma forma poética ampliada de mim mesmo que chamo de personagem, porque também não poderia chamar de persona, mas eu sei que sou eu, só não posso deixar que se descaracterize esse código poético que criei pra essa peça e, por isso, quanto mais vivo estiver no código mais posso me manter nele mesmo, mais ele me dá potência para me poetizar, e mais enriquecido e verdadeiro ele fica ao passar por tantas nuances e instigares diferentes.

Acredito que, se tivéssemos optado por trabalhar a criação partindo de uma técnica apenas como meio de instigar o corpo, correríamos maior risco de uma peça chapada sem muita textura. A experimentação corporal variada de um corpo sincero, entregue, disponível, em risco, proposto a sair de seu estado de conforto, encontrou muito mais respostas e materiais para criação. Depois sim, pudemos organizar, aplicar dramaturgia, músicas, racionalizar mesmo, visando otimizar a comunicação e criar texturas de cenas não óbvias.

Outra coisa fundamental dentro do nosso processo foi não deixar o caminhar demasiado rígido. Ou seja, o foco existe, mas a permissividade também e, se surge uma cena que propõe um caminho diferente, vamos ouví-la.

A experimentação girou em torno de manter o corpo disponível através do treinamento diário, para que, ao mesmo tempo, criássemos racionalmente e pensássemos em elementos que gostaríamos de vivenciar em cena, e aí colocássemos o corpo disponível nessas situações, pra que ele nos desse as respostas de como poetizá-las. Estávamos em busca do máximo de organicidade na criação. Por isso, não queríamos aplicar técnicas às cenas para torná-las mais interessantes, queríamos que as cenas já surgissem do corpo em experimentação técnica. Sinto como dois caminhos paralelos que devem se cruzar naturalmente: a criação racional e a criação do corpo em treinamento e reações.

Estamos pensando aí o Teatro Físico não só como treinamento e possibilidade de aplicação, mas como veículo de criação. Não é o pensamento lógico ditando como aplicar a técnica à criação, como método. É a técnica proporcionando um corpo criativo que deixa vazar uma expressão. Essa expressão pode ser qualquer coisa. Aí entra a razão e a sensibilidade para nos apropriarmos dessa expressão e enriquecermos a composição criada. Nesse momento, nos fazemos presentes enquanto atores-criadores, corpo e razão, para fazermos desse material uma peça, um espetáculo de dança, um número ou uma performance. Poderíamos pegar uma cena criada racionalmente com texto, por exemplo, e aplicarmos uma técnica nela. Mas essa técnica vai aparecer, porque é como uma camada de tinta em cima da cena, que vai ficar impregnada. Ela não foi motora da cena, foi uma roupagem. É como se eu ilustrasse a cena. Deixando o corpo viver essa técnica para aguçar memórias musculares e criar comoção artística, criamos as cenas de maneira mais orgânica, para que essa técnica, ao final, fique invisível. Porque não nos interessa que ela seja vista. O foco da criação passa a ser a minha expressão corporal (sem divisão de corpo, emoção, razão, alma, energia) para universalizar uma vivência pessoal, a minha reação a esses estímulos com verdade, para que o público sinta com verdade o que a eles comove. Aí não é mais a dança dos níveis de tensão, a mímese, o corpo do santo, é realmente o meu corpo em uma situação de comoção artística. E quando eu experimento esse corpo, com essa sensação dentro dessa situação (por exemplo a do Cristo), eu tenho meu corpo respondendo naturalmente como ele responderia nessas circunstâncias e me dando toda a complexidade dos sentimentos de estar vivendo isso. Quando olho o meu algóz que prega esse prego na minha mão, os níveis de tensão dançando no meu corpo são a fala e me dão a expressão para que meu corpo possa vazar isso, e para que as pessoas que me assistem possam ler e interpretar, dentro dos registros delas, essa movimentação.

As pessoas vão ver a minha sensação física e emocional real, e não simplesmente projetada, que faz meu corpo e meu olhar transmitirem aquelas sensações. Eu não vou pensar em contar história ou projetar memórias racionais. Aí eu, Danilo, posso contar o que o poeta Zé sentiu, o que esse Adão sentiu, o que esse Jesus sentiu, simplesmente porque eu sinto isso também. E aí eu acredito que as pessoas possam sentir, no registro delas, porque eu não estou representando a dor do Zé, nem do Adão, nem de Jesus, eu estou vivendo a minha dentro dessa estrutura poética que nos irmana. Eu não represento nem na criação e nem na cena, eu vivo isso, mas vivo para doar, como ferramenta de passagem, passagem de poesia. Eu não preciso aí tentar adivinhar o que a personagem está sentindo ou o que a pessoa da foto está sentindo, nem explicar o porquê daquela expressão ou das oposições do seu corpo, eu sinto e expresso o que o meu corpo sente nessa situação e com esses instigares. Isso é memória muscular do corpo em vida e aí, eu acredito, que se tem uma expressão colada , uma cena sincera e a vida poetizada em cena.

Danilo Dal Farra (Ator-criador) e Lívia Rios (Atriz-criadora)


A cena discutida acima foi inspirada nos poemas "O Guardador de Rebanhos" VIII Fernando Pessoa(Alberto Caeiro) e "A Alvorada do Amor" de Olavo Bilac, que posto aqui para que possam curtir:


A Alvorada do Amor

Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:

Chega-te a mim! entra no meu amor,
E e à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgôsto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

Vê tudo nos repele! a tôda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrêlas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sôbre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;
E, vendo-te a sangrar das urzes através,
Se amaranhem no chão as serpes aos teus pés...
Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,
Ilumina o degrêdo e perfuma o deserto!
Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,
Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:
Tudo renascerá cantando ao teu olhar,
Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,
Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!
Rosas te brotarão da bôca, se cantares!
Rios te correrão dos olhos, se chorares!
E se, em tôrno ao teu corpo encantador e nú,
Tudo morrer, que importa? A natureza és tu,
Agora que és mulher, agora que pecaste!
Ah! bendito o momento em que me revelaste
O amor com teu pecado, e a vida com o teu crime!
Porque, livre de Deus, redimido e sublime,
Homem fico na terra, luz dos olhos teus,
Terra, melhor que o Céu! homem maior que Deus!

Olavo Bilac (Livro: Bilac Tempo e Poesia publicado em 1965)



O guardador de rebanhos - VIII

Fernando Pessoa
(Alberto Caeiro)

[213]


Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

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